Pequenas gotas brotam das axilas. É o calorão! Posso estar sentada, quieta, não importa. Ainda que a atividade exija pouca energia, ele se manifesta. Não escolhe dia, horário, lugar. Também aparece enquanto durmo e só constato nosso encontro ao acordar, o travesseiro úmido da noite morna.
O ar-condicionado marca 17°C, eu mudei mesmo. Em outros tempos, acordaria enrolada em duas cobertas grossas e o visor marcaria alguma temperatura acima de 20°C. Não tenho usado cobertas, permanecem dobradas num canto da cama. No trabalho, o casaquinho segue pendurado na cadeira, fracassado. O frio, visita certa no meio da tarde, sumiu de mim.
Não preciso de desodorante, eu enchia a boca para dizer. Podia passar horas na rua, fazer diversas tarefas e voltaria para casa ilesa, nada de cheiro desagradável. Agora levo o frasco na bolsa, preciso reforçar a passada, renovar o tempo de proteção ou amargar o terrível incômodo de estar fedida. Algumas roupas ganharam manchas duras embaixo dos braços, dessas que não amenizam nem com os sabões mais potentes.
Os banhos eram sempre quentes, mesmo morando numa cidade famosa pelas altas temperaturas. Esse hábito inspirou um conto (Poemas no espelho) publicado no meu segundo livro. A personagem principal da narrativa gosta de água quente para se banhar e aproveita o ambiente repleto de vapor para fazer desenhos e escrever poemas no vidro embaçado do box.
Às vezes, durante os treinos, eu reclamava do pouco suor, de não terminar ensopada como gostaria. Não tenho outra opção no momento: ao sair da academia, preciso tirar a blusa para não molhar o banco do carro e gosto de torcê-la até pingar. Me espanta a quantidade de líquido extraído de uma única peça de roupa.
Relatei os sintomas à médica que, imediatamente, pediu para aumentar a ingestão de água, evitar os termogênicos, reduzir a dose do remédio e ter paciência. No começo é assim, o organismo leva tempo para se adaptar ao hormônio sintético e encontrar a dosagem ideal, em breve a gente chega lá. Te vejo em seis meses.
A história dos termogênicos não foi fácil de engolir, porque significa evitar gengibre, pimentas, café. Eu não sei dizer de qual deles gosto mais.
Enquanto isso, tem uma casa em chamas e essa casa sou eu. A nova calorenta, que além do desodorante carrega um leque na bolsa. No espelho, vejo a cicatriz no pescoço1. Depois dela, sou uma versão em processo, em construção. A face vermelha entrega um corpo que arde e se pergunta quando o frio voltará, quando vai passar essa insana temporada de calorões.
Faço de tudo para refrescar. Demoro nos banhos frios, preparo os sucos preferidos, visito cachoeiras esquecidas, uso a piscina do condomínio como nunca usei. É quando deixo de pensar, ainda que por pouco tempo, nas minhas versões anteriores, esse punhado de ilusão.
Estudo o fogo como palavra, assim como as histórias e mitos relacionados a ele. Descobri a origem latina (focu), que inicialmente significava casa, lar. Da mesma palavra nasceu foco, ponto para o qual converge alguma coisa. Nessa temporada de calorões, tudo converge para o corpo, centro das minhas atenções. Entre bebidas geladas e abanadores, a mensagem que recebo é: repara no corpo, escuta o corpo, sinta o corpo, toca o corpo, acalanta o corpo.
Obedeço e dou a ele oportunidades que minhas versões antigas não aproveitavam tanto, como um banho de chuva. Os pingos duros na janela são o convite para correr ao quintal agora. Preciso encerrar este texto por aqui.
A Malabarista lê:
No começo de janeiro, ouvi o episódio Feliz livro novo, do podcast Rádio Companhia. Nele, a escritora Andréa Del Fuego recomendou Cupim, da espanhola Layla Martínez. Comprei o livro dias depois e li ainda no mês de janeiro.
Mais importante do que saber o que acontece nessa história é sentir o que suas páginas transmitem. Eu diria que o livro trata de um sentimento que atravessa gerações de mulheres de uma mesma família e desemboca em vingança. Uma avó que enxerga sombras e faz amarrações, a neta destinada a repetir caminhos. Ambas abrigadas numa casa tão personagem quanto elas, uma casa assombrada que, de formas distintas, responde ao que se passa com suas mulheres.
Os dez capítulos são divididos entre a voz da avó e da neta, num dueto desconexo, não linear, em que as respostas são dadas aos poucos, surpreendendo os leitores até a última página. Duas ausências conduzem a trama: uma mulher desaparecida (filha da vó/mãe da neta) e um menino, filho de família rica da região para qual a neta trabalhou como doméstica. O garoto some por suposto descuido da jovem, que se torna alvo de uma investigação.
Em breve, volto a falar desse livro na newsletter.
Como contei em outra edição da newsletter, sou um ser humano sem tireoide desde setembro do ano passado. Isso provoca uma série de consequências que, vez ou outra, se transformam em textos.
Parece um ensaio de menopausa nos seus 30 e poucos anos, o fogo que consome o ânimo das mulheres... bonito saber que é um lembrete da casa, do lar, da vida que te habita.