Se tem algo que eu considero ostentação é ter biblioteca em casa, ainda que modesta, pode ser uma estante abarrotada. Não nasci em casa com biblioteca, meus pais não tinham condições de nos encher de livros, mas compravam alguns, quando o dinheiro sobrava. Mais importante, nos ensinaram a valorizar o livro. Assim, me tornei leitora.
Ao longo da vida, as obras de literatura sempre me acompanharam. No entanto, houve um período em que estive mais afastada delas. Fiz duas faculdades (Jornalismo e Direito) e, desde os 18 anos, precisei conciliar trabalho e estudo. Até ser aprovada no primeiro concurso público, aos 26 anos, me dediquei a empregos em escala 6x1, jornadas de período integral.
Nessa dinâmica, o tempo para ler literatura (e para uma série de outras atividades) ficava comprometido. Trabalho e estudo consumiam pelo menos 50% do dia. Na época da faculdade de Direito, eu trabalhava o dia inteiro, ia direto para a aula, chegava em casa por volta das onze da noite. O pouco tempo que restava era dedicado às leituras acadêmicas, produção e organização de trabalhos, preparação para provas.
Dos 18 aos 26 anos, eu quase não lia (ficção), envolvida num universo de calhamaços jurídicos, páginas e mais páginas de apostilas rabiscadas e transformadas em mapas mentais para facilitar a compreensão. Mas vivia saudosa das histórias e personagens que, até ali, tinham alimentado minha vida, minha alma, minha imaginação.
Com a decisão de estudar para concursos públicos, o afastamento da literatura se tornou ainda maior. E permaneceu dessa forma até a primeira aprovação, que me permitiu uma realidade nunca antes experimentada: emprego em escala 5x2, jornada de meio período. Foi fácil me acostumar à nova rotina e nela o tempo deixava de ser tão comprimido, apertado.
O trabalho é destino de quem não nasce herdeiro. Eu não queria (e nem podia) abrir mão dele, mas também não queria abrir mão das experiências em que encontro prazer, como a leitura. O capitalismo tenta te convencer que trabalho pode ser lugar de prazer, não caia nessa.
Vieram outras aprovações em concursos, novas instituições. Em 2024, completei dez anos no meu emprego atual, escala 5x2, jornada de meio período, com remuneração justa. Uma realidade que eu gostaria que fosse de todos os brasileiros. Nesses dez anos, pude estabelecer uma rotina diária de atividade física, da qual não me vejo sem. Me reaproximei dos livros de literatura. Retomei a escrita literária e os planos relacionados a ela. Dois livros de contos nasceram, um romance começou a ser escrito. Eu não tenho dúvida: a mudança na relação com o trabalho fez toda diferença nesse processo de reconhecimento próprio.
No ano passado, quando foram divulgados os resultados da pesquisa Retratos da leitura no Brasil (6ª edição), acompanhei diversas discussões a respeito dos dados que, entre outros pontos, mostraram a redução do número de leitores no país. Na ânsia por analisar as informações, o que mais vi foram tentativas de apontar culpados, sendo o uso excessivo do celular o principal deles.
Sei que estamos, enquanto sociedade, cada vez mais conectados à internet, presos a uma lógica de conteúdos rápidos, rasos, o que pode sim nos afastar dos livros. Mas a busca por culpados, nesse caso, desvia a reflexão daquilo que realmente precisa ser atacado. Discutir relações de trabalho e gestão de tempo deve fazer parte das ações para ampliar o acesso à leitura e ao livro no Brasil, da mesma maneira como se discute a formação do público leitor.
Na pesquisa Retratos da leitura, um dos itens questionados se refere às barreiras entre livros e leitores. Nesse quesito, 47% dos entrevistados disse não ter lido mais por falta de tempo. A segunda resposta mais mencionada (porque prefere outras atividades) foi opção de 9% dos participantes.
O tempo, sempre ele.
Lembrar da época em que eu quase não lia, me fez lembrar de uma Larissa que eu via no espelho mas não reconhecia. Não era eu ali. Me sentia sobrecarregada, sufocada pelos compromissos de trabalho e estudo, com a saúde mental em frangalhos. A rotina me afastava de práticas que eu considerava essenciais.
Voltei a mim quando passei a trabalhar menos e a encontrar espaços para perceber os detalhes do cotidiano, movimentar o corpo, ter mais tempo com a família e os amigos, ler algumas páginas por dia, escrever outras, ou simplesmente passar uma hora deitada no chão, sem a pressão de qualquer utilidade.
Vida Além do Trabalho (VAT) - É o nome do Movimento fundado por Rick Azevedo (vereador PSOL-RJ) que tem se proposto a debater as condições de trabalho no Brasil. Entre as reivindicações do movimento está a revisão da escala 6x1 e a implementação de alternativas que promovam uma jornada de trabalho mais equilibrada, permitindo que os trabalhadores desfrutem de tempo para suas vidas pessoais e familiares.
O movimento também defende o debate público aberto e transparente, envolvendo representantes dos trabalhadores, empregadores e especialistas em direitos laborais, para encontrar soluções viáveis e justas que melhorem as condições de trabalho no Brasil.
Assine a petição pública em apoio ao Movimento VAT!
Amei o texto e amei ver minha arte aqui ❤️
Nossa, lendo seu texto, pensei, claro, óbvio que estamos cada vez mais comprimidos pelo tempo no trabalho, mas é como só tivesse me dado conta ao ler suas palavras. Isto porque me culpei por muito tempo por ter me afastado dos livros, como se eu fosse a única responsável. A jornada do trabalho é opressora, e coloco aqui mais uma questão: será que além do trabalho, a jornada doméstica consome ainda mais as mulheres? Não vi a pesquisa, mas chego a arriscar o palpite que a 'falta" de leitura pode apontar mais para o gênero feminino, além dos aspectos citados por vc. Falando de mim, por alguns anos me senti sobrecarregada pela maternidade, afazeres domésticos e trabalho. Por hora, é preciso muito manejo e jogo de cintura para manter a leitura como um hábito, tenho certeza de que se a distribuição do trabalho feminino fosse mais justa, teria um ritmo de leitura maior.