Um ano de leituras incríveis - Parte I
Uma cidade com milícia, racismo, fake news, delação premiada, conservadorismo e fanatismo religioso. Parece atual, mas esse é o Rio de Janeiro de 1732, cenário do romance da Eliana Alves Cruz
Olá! Como você está?
Decidi que as próximas edições desta newsletter vão trazer textos sobre livros que adorei ler em 2022. No geral, foi um ano de ótimas leituras, descobertas literárias importantes e aprofundamentos em autores e autoras que já admirava. Vou começar pela Eliana Alves Cruz, carioca, escritora e jornalista nascida em 1966.
Recentemente, Eliana foi vencedora da 64ª edição do Prêmio Jabuti, com o livro “A vestida” (categoria contos). Conhecer a obra dessa autora estava entre as minhas metas para 2022, o que consegui concretizar em agosto, a partir da leitura da obra “Nada digo de ti, que em ti não veja” (Pallas Editora, 2020). Acabei de comprar mais um livro dela (Solitária), que pretendo ler no começo do próximo ano.
É sobre “Nada digo de ti, que em ti não veja” que falarei desta vez. Em pleno 2022, acompanhamos as discussões sobre a realização de um dos maiores eventos esportivos mundiais, a Copa do Mundo Fifa, num país que considera a homossexualidade como um crime, o Catar. O livro em questão tem como personagem central uma travesti preta alforriada vivendo no Brasil Colônia, em que a sodomia – como a homossexualidade era chamada – configurava crime de acordo com as Ordenações Filipinas (que reuniam as normas da época).
Vem conhecer!
A malabarista lê…
Nada digo de ti, que em ti não veja
Vitória era o seu quinto nome desde que viera ao mundo. Nasceu como o menino Kiluanji Ngonga, no Congo, e foi batizada como Manuel Dias quando chegou ao Brasil. Depois de conseguir a liberdade, escolheu ser apenas Vitória, conhecida mandingueira, calunduzeira no Rio de Janeiro da primeira metade do século XVIII.
É essa a protagonista do romance “Nada digo de ti, que em ti não veja”, da escritora Eliana Alves Cruz. Por mais que recriminassem a travesti, as pessoas recorriam a ela com frequência para curar espinhela caída, bicheira, quebrantos, dor de dente, retenções de urina, febres ou para ouvir suas adivinhações.
O romance histórico nasceu a partir das pesquisas da autora, que também é jornalista e se deparou com registros de homens que se apresentavam como mulheres no Brasil Colônia. No livro, Vitória se apaixona por Felipe Gama, membro de uma importante família da sociedade carioca daquele período. O amor proibido gera complicações aos dois, especialmente porque a homossexualidade era considerada crime pelas Ordenações Filipinas e rendia processos da Santa Inquisição.
Na trama, as famílias Gama e Muniz concentram histórias sobre escravidão, mineração, contrabando e esquemas de influência que afetam diretamente as vidas de Felipe e Vitória. Acompanhamos os passos desses personagens e de outros – como Quitéria e Zé Savalu – a partir do olhar de um narrador onisciente que nos coloca a par de cada detalhe.
Eu penso que romance histórico é das coisas mais difíceis de se fazer no campo da escrita porque exige cuidados que vão muito além de colocar a narrativa para fora. Eliana faz isso com primor, construindo um texto daqueles que a gente não quer largar e que, além de tudo, cumpre a importante missão de dar voz a culturas invisibilizadas durante tantos séculos. Quando olhamos para a história do nosso país, muito do que conhecemos vem da visão da branquitude. As obras de Eliana nos mostram outras perspectivas (tão necessárias).
“Nada digo de ti, que em ti não veja” me pegou por esse título bonito – frase tirada de cartas presentes na obra – e pela vontade que eu estava de conhecer o trabalho da autora. Terminada a leitura (das melhores do meu 2022), permanecem comigo os conselhos de Vitória para seu amigo escravizado Zé Savalu:
Traição é um vício de sinhô e de sinhá.
Quando tudo estiver difícil, olha para a frente.
E quando chegá a hora, agarra-te com a pedra e com o santo.
E por falar em Copa do Mundo…
Em 2020, publiquei uma crônica no portal “Cidadão Cultura” sobre a Copa do Mundo de 1994, ano em que a Seleção Brasileira de Futebol conquistou o tetracampeonato. Aproveitando a ocasião, trouxe o texto para esta edição da Malabarista de Palavras. Boa leitura!
Sem sorte no jogo - Talvez a vida seja uma breve sucessão de amores e desamores. Não pude deixar de pensar sobre isso quando abri a caixa de madeira, há tempos esquecida no guarda-roupa da minha mãe. Eu havia decidido passar o fim de semana na casa dela e ajudá-la em algumas tarefas de organização de roupas e outras coisas. Na caixa de madeira, o recorte de jornal amarelado me fez lembrar um amor antigo.
“É tetra!”, dizia o título da matéria de jornal. Na mesma página, uma foto em grandes proporções mostrava o jogador Romário agarrado à taça dourada. De posse daquele registro, revivi acontecimentos de 1994. Faltavam poucos dias para a final da Copa do Mundo de Futebol e minha família estaria reunida para assistir ao jogo entre Brasil e Itália. Eu tinha seis anos de idade e um amor incondicional pelo camisa 11 da Seleção Brasileira.
Não consegui esconder a surpresa quando meu pai aproveitou o silêncio e tranquilidade do almoço para sentenciar: “Ninguém da nossa família vai torcer pelo Brasil na final!”. Ele limpou a boca no guardanapo de papel, levantou da mesa e caminhou até o quarto onde dormia. Minutos depois, voltou com uma tampa de garrafa de refrigerante na mão.
“Olha o que tá escrito na tampinha”, disse meu pai, enquanto eu forçava os olhos para enxergar as letras pequenas: 1º Itália, 2º Brasil, 3º Suécia. Antes que qualquer pergunta fosse feita, ele explicou: “Você sabe o que isso quer dizer? Que esta tampinha pode nos tornar milionários. Só precisamos torcer pra Suécia derrotar a Bulgária e a Itália vencer o jogo contra o Brasil”.
Os assuntos do momento eram a Copa do Mundo e a promoção da Coca-Cola. A empresa havia colocado no mercado garrafas com tampas que traziam combinações dos três primeiros colocados no campeonato. Ganharia a premiação quem tivesse em mãos uma tampinha com os nomes das três equipes que alcançassem o pódio. Não lembro de outros detalhes, mas sei que o decreto imposto em nossa casa dizia: proibido torcer para o Brasil. O problema é que eu tinha um amor e ele jogava na seleção brasileira.
Meu pai já fazia planos com o dinheiro. Um dia antes da final, a Suécia ganhou da Bulgária, conquistando o terceiro lugar. Com isso, os sonhos se intensificaram. Casa de campo, viagem para a praia, carro do ano e mudança de cidade. O plano parecia perfeito, a grande chance para que a família tivesse, entre outras coisas, a sonhada casa própria.
Assistimos a final no restaurante que meus avós administravam na época, um simples restaurante de posto de gasolina, beira de estrada. A família toda decidiu se reunir naquele lugar, especialmente porque a televisão era maior. Apenas meu pai, mãe, irmã e eu sabíamos que o resultado daquele dia poderia mudar as nossas vidas. As outras pessoas faziam cara de espanto toda vez que ouviam meu pai gritar a favor da Azzurra. Houve quem se incomodasse tanto a ponto de sair de perto dele.
Cada vez que a bola chegava aos pés do Romário, a vontade de gritar me invadia. Numa das vezes em que ele chutou a gol, me levantei da cadeira e bati palmas. O olhar furioso do meu pai me jogou imediatamente de volta ao assento, onde eu fazia o possível para me conter. Naquele dia, nossos nervos foram testados: a partida terminou em zero a zero, não houve gols na prorrogação, o título se decidiu nos pênaltis, pela primeira vez na história das Copas do Mundo.
Quando o chute decisivo do italiano Roberto Baggio passou por cima da trave, lágrimas caíram dos olhos do meu pai. Tomado pela raiva, ele jogou a tampinha longe e começou a dar murros cheios de lamento na mesa de plástico a sua frente. Ao redor, as pessoas bebiam e gritavam. Sem condições de suportar a cena, ele foi para o carro, um fusca verde 83, acalmar os ânimos. Não aceitava ter passado tão perto da riqueza, olhado em seus olhos e não desfrutar de tudo o que ela podia oferecer. “Uma chance dessa só se tem uma vez na vida”, ele repetia.
Me juntei aos outros na comemoração. Vinte e seis anos depois, o pedaço de jornal repousa em minhas mãos, me fazendo lembrar o dia em que quase ficamos ricos e precisei disfarçar um amor do qual eu nem me lembrava mais, um amor sucedido por tantos outros em 32 anos de vida. Para minha sorte, tudo acabou bem. Continuávamos pobres, é verdade, mas o Romário estava em todos os canais de televisão, agarrado à taça tão desejada. Diante daquela cena, a promoção se tornou um pequeno detalhe.
Em tempo: Anos depois do tetracampeonato, li uma notícia sobre a promoção da Coca-Cola. Ao contrário do que muitos pensaram na época (inclusive meu pai), a tampinha vencedora não era tão exclusiva assim, o prêmio teve que ser dividido entre milhares de ganhadores. Saber que eles receberam pouco mais de cinquenta reais me tranquilizou. O meu amor pelo Romário valia muito mais.
Se você gostou do que leu aqui, compartilha com pessoas que possam se interessar pelo conteúdo. Volto em breve para falar de mais uma leitura incrível de 2022. Até já!