As línguas são dinâmicas, mudam de acordo com os hábitos dos usuários. Na Idade Média, somente o latim era denominado língua, sendo os demais idiomas e modos de falar chamados de linguagens ou até mesmo de vulgares. O latim se diferenciava pelo uso restrito às elites letradas. Fora isso, tudo o que se tinha era popular, grosseiro, para usar sinônimos atribuídos atualmente à palavra vulgar.
As palavras nem sempre existiram, elas têm uma história própria e isso é objeto de estudo da etimologia. Para estimar a idade e traçar a história de uma palavra, os pesquisadores resgatam, especialmente, os documentos em que esses termos apareceram pela primeira vez. Jornais impressos, cartas e obras literárias têm ajudado a contar a história das palavras.
Uma obra literária é reflexo de seu tempo, registro de comportamentos, usos da linguagem, transformações sociais e jeitos de usar o vocabulário. Autores e autoras expressam, pelos livros que escrevem, o universo em que vivem, a bagagem que carregam, o jeito particular com que usam as palavras e compreendem o mundo. Por isso, obras literárias também são espaços para emitir a certidão de nascimento de palavras novas e isso se amplia na medida em que vemos uma literatura mais diversificada.
Assim como o latim, que durante séculos separou a elite da plebe, a literatura foi usada para contar histórias de quem pertencia aos grupos privilegiados da sociedade. O que se tinha eram narrativas muito parecidas, seja em relação aos personagens, espaços descritos, conflitos propostos, jeitos de usar a linguagem. E quando algo diferente disso aparecia, os críticos se apressavam a colocar em xeque, como se fez com a obra de Carolina Maria de Jesus. Até hoje, há quem tenha a audácia de questionar o viés literário do que foi escrito por ela, uma mulher preta, da favela.
Graças à coragem e ousadia de autores como Carolina Maria de Jesus, a literatura tem passado por mudanças que atribuem a ela essa diversidade, o que permite ler mais e mais histórias de gente e lugares sem pedigree, o meu tipo preferido de narrativa. Pensando nisso, resolvi destacar dois livros lidos recentemente, ótimas sugestões para quem deseja explorar os caminhos novos disponíveis na literatura brasileira contemporânea.
Os supridores, de José Falero
Você não precisa ler “O capital” para entender os mecanismos que sustentam o capitalismo. A maioria da população brasileira aprende na prática, diante dos desafios impostos pelo cotidiano. A dupla Pedro e Marques, protagonistas da obra de José Falero, tem seu destino forjado pelas desigualdades que levam muitas pessoas a arquitetar planos perigosos para ganhar dinheiro e, com isso, deixar o ciclo da pobreza.
Falero sabe do que fala. Nascido em 1987, ele cresceu na periferia de Porto Alegre, na Lomba do Pinheiro, e ali encontrou inspiração de sobra para as narrativas que coloca no papel. Pedro e Marques trabalham como repositores numa rede de supermercados na capital gaúcha e estão cansados da vida difícil que levam. Nas conversas a caminho do trabalho, no estoque ou em meio às prateleiras da loja, surge a ideia que mudará a vida deles.
Para além da trama, que é intrigante e prende os leitores, a construção narrativa desenvolvida pelo autor possibilita um recorte preciso dessa periferia, suas ruas, suas gentes. Qualquer pessoa pode escrever a periferia? Até pode, mas nem sempre convence. José Falero convence e faz isso pela linguagem, mostrando que ela também representa uma questão de classe.
E, ao fim, a relação com o livro e a literatura é o que salva Pedro, um dos protagonistas mais persuasivos que já conheci.
“Essa rua terminava de súbito, sem saída, desembocando na inesperada imundície de um pequeno largo de formato arredondado. Ali, claro, já não havia qualquer vestígio de serviço público de limpeza, já não havia prédios altos, já não havia gente rosada, já não havia pedigree, já não havia sotaque anasalado; o que havia eram casas humildes, muros pichados, lixo espalhado por toda parte, cães sarnentos, gatos pestilentos, cavalos esfalfados de puxar carroça, gente de pele curtida no sol, gente malvestida, gente de rosto abatido pela vida dura, gente de linguajar inculto e incauto. E só a pé era possível seguir em frente, indo pelos becos estreitos que conduziam para dentro daquele pedaço de inferno.” (p. 164, Os supridores, Editora Todavia)
O céu para os bastardos, de Lilia Guerra
A proposta de Lilia Guerra na literatura é colocar no centro das narrativas mulheres pretas comuns, trabalhadoras domésticas, babás, cozinheiras, manicures, diaristas. É isso que a autora tem feito em livros como “Rua do Larguinho”, “Perifobia” e “O céu para os bastardos”, publicado em 2023, pela Editora Todavia.
Nessa obra, conhecemos a história de Sá Narinha, mulher preta e periférica que trabalha em casa de família e vive numa comunidade chamada Fim-do-mundo. A trama é construída a partir das relações de pessoas da comunidade.
No meio desse caldeirão de vivências ficcionais, Lilia se demora na vida de sua protagonista, mãe solo que contou com a ajuda da irmã para criar o filho, Júlio César. Quando adulto, o rapaz se torna feminicida e o crime desencadeia dores com as quais Sá Narinha terá que lidar por toda a vida.
Assim como na obra de José Falero, a escrita de Lilia Guerra transmite verdade a partir de personagens com histórias que se confundem com a própria autora, habilidosa na arte de dar voz a um universo que esteve, durante tanto tempo, afastado das manifestações literárias.

Para conhecer mais a respeito da Lilia, você pode ler a entrevista dela para a Revista 451 na ocasião do lançamento de “O céu para os bastardos”.
O escritor é um ser viajado?
Nos últimos meses, tenho voltado com frequência ao livro “A obrigação de ser genial”, da escritora argentina Betina González. Li essa obra no ano passado e me senti impactada pelas diferentes abordagens relacionadas ao fazer literário. Quando fala de sua relação com a escrita e de como ela começou, Betina diz do quanto se sentia limitada pela ideia de que o escritor é, necessariamente, um ser viajado (no sentido de conhecer muitos países, ser poliglota, ter “bagagem cultural”).
Essa visão é excludente, como explica a autora, porque distancia da produção literária pessoas que, por questões econômicas e sociais, não possuem tais vivências. Quando a periferia escreve e publica, subverte esse tipo de pensamento pautado na lógica de que na vida comum das periferias não há nada para ser contado, que seus cenários e personagens são desinteressantes.
Em 2024, enquanto desenvolvia oficinas de escrita em escolas públicas da periferia de Cuiabá (Mato Grosso), o que eu mais ouvia era essa dificuldade dos alunos de reconhecerem valor nas quebradas onde vivem, nas famílias das quais fazem parte, nas suas trajetórias de vida. E, na contramão disso, ao propor qualquer exercício de escrita, por mais simples que fosse, era poesia pura que eu via nascer. Comovida, eu fazia questão de repetir: quanta riqueza tem aqui! Quanta riqueza!
Eles devolviam olhares interrogadores: será?
Análise super pertinente e necessária! As indicações de leitura são afiadas! Adoro José Falero!