Por causa da Clarice
Sim, a Lispector. Uma crônica sobre meu amor pela autora e uma amizade desfeita
A biblioteca Orlando Nigro era um dos meus lugares preferidos nos tempos de Ensino Médio, no Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet) de Mato Grosso. Eu sempre tinha um livro emprestado; devolvia um, pegava outro. Conheci Clarice Lispector naquela época, através do professor de Português que me entregou um exemplar de “Laços de família” acompanhado pelo aviso: “você vai gostar”.
Gostei e passei a buscar outras obras da autora no acervo da biblioteca. A hora da estrela, Perto do coração selvagem, Água viva, Felicidade clandestina, A maçã no escuro. Esses livros me pegavam pelo título e eu os escolhia sem saber do que tratavam, simplesmente porque tinham sido escritos por ela. Num período de tantas incertezas, encontrei naquelas páginas um suporte inesperado.
Certa vez, decidi que “Um sopro de vida” seria a próxima leitura. Digitei o nome da obra no computador para checar a localização e ver se não estava emprestado; o sistema indicava disponibilidade. Diante da prateleira, me pus a procurar o livro, sem sucesso. Um dos funcionários veio ajudar nas buscas e orientou a expandir os trabalhos para outras estantes, indignado com os usuários que colocam os livros em qualquer lugar e dificultam a vida dos bibliotecários.
Não encontramos a edição de “Um sopro de vida”, exemplar único no acervo. Voltei ao computador para pesquisar mais títulos da autora e decidir pelo substituto. “A paixão segundo G.H.”, não tive dúvida. Mas a história se repetiu: constava no sistema, mas não conseguimos achar a obra. Para não sentir que o esforço havia sido inútil, me comprometi a pegar o primeiro livro da Clarice a dar bobeira no meu campo de visão. Comecei a ler “O lustre” naquele mesmo dia, no percurso de ônibus entre o Centro de Cuiabá e o bairro em que eu morava.
No Ensino Médio, eu já escrevia, e tinha ao meu redor um bocado de colegas com potencial para as artes: desenhistas, instrumentistas, atrizes, fotógrafos, compositores, roteiristas. Os corredores do Cefet eram um caldeirão de encontros provocadores, por onde circulavam livros, CDs, DVDs, revistas, entorpecentes. Naqueles corredores conheci Kafka, Tim Burton, Kurosawa, Nietzsche, Rubião, Guimarães Rosa.
A Cecília (nome fictício) era um desses talentos promissores. Nos conhecemos durante as aulas de handebol, um verdadeiro sofrimento para ela, que não levava nenhum jeito para práticas esportivas. Fazia por obrigação. No entanto, sua veia artística pulsava; ela gostava de Moda, desenhava vestidos, aprendia idiomas com facilidade, publicava retratos das amigas num Fotolog.
O convite da Cecília me pegou de surpresa numa sexta-feira, depois da aula de handebol. “Laricota, vamos fazer umas fotos amanhã?”. Nessa época, eu tinha um blog chamado “Laricota” e alguns amigos curtiam me chamar assim. “Vamos! Qual a proposta?”, eu quis saber. “Tem uma loja de roupas indianas no Centro, no calçadão. Passei por lá esses dias e vi que estão vendendo quimonos maravilhosos. Pegamos os quimonos, entramos juntas no provador, você prende os cabelos num coque e eu faço as fotos rapidinho”. Assim fizemos e eu ainda tenho algumas dessas fotos.
Realmente não gastamos muito tempo no provador da loja, o que permitiu esticar o passeio e fazer mais registros. Primeiro, Cecília quis usar como cenário a fachada do antigo Cine Bandeirantes; depois fomos ao Morro da Luz, onde a sessão terminou. Naquele ano, 2004, nos sentíamos seguras subindo as escadarias do Morro, algo difícil de conceber nos dias de hoje, com o lugar transformado em refúgio de uma legião de pessoas em situação de rua, a maioria dependentes químicos.
Terminada a sessão, Cecília me chamou para almoçar na casa dela. Além de enfatizar a boa comida preparada pela mãe, ela disse que tinha algo a me mostrar. Era uma coleção de livros e DVDs, mas não era uma coleção qualquer. Minha amiga colecionava livros furtados de bibliotecas e livrarias, DVDs furtados de unidades das lojas Americanas.
As lojas Americanas mudaram muito de lá para cá. Naquele tempo, poderiam ser uma tradução do paraíso, com prateleiras lotadas, produtos variados e promoções convidativas. Recentemente, entrei numa delas e me espantei com as gôndolas nuas, uma nudez perturbadora para quem viu essas lojas em seus tempos áureos.
No quarto da Cecília, observei livros e DVDs serem espalhados na cama, enquanto a dona da coleção explicava as artimanhas usadas para furtar os produtos sem ser descoberta. Tamanha raiva senti quando ela balançou no ar os exemplares de “Um sopro de vida” e “A paixão segundo G. H.”, escamoteados da biblioteca da nossa escola, os carimbos nas capas não deixavam dúvida. Cecília também era fã da Clarice, isso eu sabia, mas não imaginava encontrar ali, no quarto da amiga, os itens sumidos que eu desejava.
Passados uns dias, encontrei Cecília na escola e me convidei para voltar à casa dela. “Estou com saudade da tua mãe, que comida gostosa ela faz!” Não demorou para marcarmos outra sessão de fotos, dessa vez em um dos bosques da Universidade Federal de Mato Grosso. Concluído o trabalho, nos dirigimos ao prédio da Cecília para desfrutar a saborosa lasanha à bolonhesa, receita de família.
A certa altura, Cecília disse que ia tomar banho e jogou na minha direção o controle da TV. “Escolhe um canal pra você assistir!” Assim que ela entrou no banheiro, eu corri ao quarto, abri a porta do armário e não tive dificuldade de achar os livros da Clarice. Peguei os dois, meti na mochila e voltei para o sofá da sala. No ônibus, a caminho do meu bairro, comecei a ler um dos livros mais marcantes da minha adolescência: Um sopro de vida.
Não tive coragem de ficar com os livros. Li os dois e dei um jeito de devolvê-los à Orlando Nigro, o local de onde eles nem deviam ter saído. Enfiei as obras dentro de um fichário e ninguém notou quando entrei na biblioteca. Na hora da saída, larguei os exemplares em cima de uma das mesas de estudos e observei, de longe, o funcionário devolvê-los à prateleira. Missão cumprida!
Apesar do plano bem-sucedido, Cecília não voltou a falar comigo. Suspeito que tenha dado falta das obras e constatado a minha participação no sumiço. Ela tinha condições para comprar o que quisesse, diferente de mim e de muitos dos meus colegas de Cefet. Perdi a amiga, mas senti a paz de devolver um tesouro ao seu verdadeiro dono.
A Malabarista indica:
O melhor jeito de conhecer um autor/autora é lendo a sua obra. No caso da Clarice, eu me desafiei a ler todos os livros dela na ordem em que foram publicados. Essa experiência me permitiu identificar as diferentes fases do trabalho literário da escritora, observar as transformações e estabelecer uma criticidade em relação às suas produções a partir do recorte social do qual nasceram.
Para saber essa ordem de publicação, acesse a linha do tempo disponível no site do Instituto Moreira Salles. Nessa página há também informações sobre a vida da Clarice, artigos referentes à obra dela e cadernos da autora (digitalizados).
Outras dicas:
A paixão segundo G.H. - o filme: Está em exibição nos cinemas brasileiros o longa-metragem produzido a partir do livro homônino de Clarice Lispector. Do diretor Luiz Fernando Carvalho, o filme tem como protagonistas as atrizes Maria Fernanda Cândido e Samira Nancassa. Tenho olhado todos os dias a programação dos cinemas da minha cidade (Cuiabá, Mato Grosso) mas, por enquanto, nem sinal do filme por aqui. Ter lido alguns textos sobre ele me deixou ainda mais curiosa, especialmente o artigo da Veronica Stigger para a Revista 451.
Podcast Põe na Estante: A obra “A paixão segundo G.H.” ganhou, em 2021, um episódio desse podcast literário, produzido pela jornalista Gabriela Mayer. Apesar de não ser um material tão recente, fiz questão de compartilhar aqui porque gostei da discussão.
Museu: Após anos em situação de abandono, a casa onde a escritora Clarice Lispector passou a infância e parte da adolescência, no Centro do Recife (PE), vai abrigar um museu. O projeto será executado pela Associação Casa Clarice Lispector (ACCL), que recebeu a posse do imóvel no início deste mês. Termino esta edição da “Malabarista de Palavras” na torcida para que o projeto do museu finalmente saia do papel e tenhamos mais essa possibilidade de visitar Clarice.
Gente, uma colecionadora de livros roubados. Estaria mentindo se dissesse que não gostei. 😂
Mas eu ainda gosto mais de uma boa colecionadora de histórias - como você. E que não guarda; compartilha. ❤
que news maravilhosa! adorei <3