“Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.”
A frase de abertura da crônica da Marina Colasanti tomou as redes sociais na semana passada, por conta do falecimento da autora. Compreendo e valido as homenagens mas ver a mesma frase sendo repetida tantas vezes me fez pensar o seguinte: as pessoas precisam conhecer mais a Marina e o seu legado literário (imenso).
Meu primeiro contato com ela foi na adolescência, por volta dos 15 anos. Naquela época, cheguei a escolher seus livros para presentear as amigas nos dias de aniversário, como fiz com a Dáfne. Será que ela lembra? Ler Marina foi um incentivo para escolher o jornalismo e a literatura como caminhos.
Colasanti fazia da simplicidade na escrita uma elegância construída ao longo de incansáveis anos de prática. A mulher que sentava e escrevia, não conhecia bloqueios e nem se deixava limitar por erudições e tratados acadêmicos. O primeiro livro que escreveu (Eu sozinha) é um verdadeiro manifesto de liberdade literária, uma obra pautada na relação com a palavra, sem se aprisionar a questões como linearidade e definição de gênero.
Eu sozinha reúne textos curtos enumerados e organizados em dois planos:
números pares: o tempo presente, rotinas burocráticas, filas de repartições, trajetos de ônibus, rotina de trabalho, a solidão do apartamento.
números ímpares: o passado, o viés autobiográfico, a vinda ao Brasil, viagens de avião, passeios por outros países, a casa da infância.
As narrativas se intercalam, costuradas por uma linha inevitável, a solidão, marcada desde o título da obra. Meu exemplar, presente da amiga
, tem um prólogo esclarecedor, bonito, que transcrevo abaixo (em parte) porque diz muito a respeito do livro e do trabalho da Marina como um todo:Hoje me pergunto como tive a ousadia que conduziu a este livro. Mas quando o escrevi, não hesitei, talvez por não saber que estava sendo ousada.
Hora nenhuma desejei escrever um romance, como não o desejei até agora. Contos também não me atraíam. Não queria narrar, queria falar sobre, falar de. E queria fazê-lo de forma independente de modelos. O que eu conhecia mais intimamente era um sentimento de solidão. Então este teria que ser o meu tema.
Vários anos depois, quando o livro saiu, foi recebido pela crítica como se fossem crônicas, talvez pelo fato de eu ser cronista. Não eram. Desde o início gostei de estruturas mais complexas.
O que desejava, através dessa estrutura, era mostrar que a solidão se constrói desde o início, estejamos ou não acompanhadas. (…) Mas essa estrutura tão determinada, que eu quis discreta, ninguém percebeu.
(Trecho do prólogo publicado no livro “Eu sozinha”, 2ª edição. São Paulo: Global, 2018)
Nesse mesmo texto de abertura, Marina revelou que, ao terminar o livro, enviou o original a um amigo escritor, pretendia que ele editasse a obra. O amigo era Rubem Braga. Em novembro de 1964, ele enviou uma carta à autora, na qual dizia ter gostado do livro, mas se recusava a editá-lo porque não via interesse comercial. Além disso, Braga sugeriu que a amiga colocasse títulos nas partes enumeradas e publicasse os capítulos soltos em jornais e revistas. Marina não seguiu o conselho e só encontrou um editor para Eu sozinha cinco anos mais tarde.
Episódios como esse fazem parte da vida das mulheres que escrevem e desejam publicar seus trabalhos. São muitos os pretextos usados para nos desestimular, para criar obstáculos e fazer com que nossas produções continuem sendo apenas arquivos esquecidos em HDs de computadores.
Por essas e outras, mulheres como Marina foram precursoras, desbravaram territórios para que hoje mais e mais autoras consigam concretizar seus projetos literários sem medo das opiniões daqueles que ainda dominam o mercado: os homens.
A tecelã - Minha mãe é uma exímia bordadeira. Esses dias, acompanhei sua angústia na produção de um bastidor que precisou ser desmanchado duas vezes até ficar do jeito que deveria. “Nada pior do que desfazer o trabalho”, ela repetia enquanto soltava os fios com cuidado. Vê-la nessa função me fez lembrar das lições de bordado da infância, quando aprendi o ponto de cruz.
De fato, não havia nada mais frustrante do que perceber um erro, a contagem equivocada de pontos, a necessidade de desmanchar o que havia sido feito. A soltura delicada buscava amenizar as marcações no tecido, que mesmo assim guardaria as marcas dos pontos antigos.
“Tecer era tudo o que fazia, tecer era tudo o que queria fazer”, diz um trecho do conto "A moça tecelã”, da Marina Colasanti. Não vou explicar a história inteira aqui, porque desejo que você, caso não a conheça, procure o texto e se permita a beleza da experiência. Para quem já conhece, pode ser uma ótima oportunidade de revisitá-lo.
A autonomia feminina é colocada no centro dessa narrativa, que apresenta uma mulher dedicada a suas tecituras. Sentada ao tear, ela materializa céus, jardins, peixes, noites, um homem para compartilhar os dias. E, sem que se dê conta, o mesmo tear usado para dar vida aos seus desejos mais sinceros passa a concentrar planos alheios, criando sonhos que não são seus, como o palácio imenso que lhe exaure o ânimo.
Tomada por uma tristeza maior que o palácio, ela sabe o que fazer para se desenredar e desmanchar os aprisionamentos. Entre o cansaço e a hesitação, a coragem vem. “A moça tecelã” é uma alegoria sobre voltar a si, desfazer o que perdeu sentido (vale também para as paisagens mentais), libertar-se do que consome a existência, por mais amor, tempo e energia dedicados à construção.
Apesar da dor desse desfazer, a tristeza passa e voltamos ao tear renovadas, dispostas a encarar os incômodos, a não fingir costume diante do que nos esgota, a desmanchar o que for necessário.
A voz de Marina - Está disponível no Spotify uma edição em áudio do conto “A moça tecelã”, lido pela própria autora. No dia em que Marina faleceu, eu preparei um café, coloquei meu headphone e escutei o texto na voz dela, como forma de reverência.
Fechei os olhos. Voltei ao tear.