Fizemos a travessia e cá estamos, nos primeiros dias de 2024. Preparar esta edição da “Malabarista de palavras” foi como tirar os sapatos e entrar, sem pesos, em casa de vó, ao som de canções capazes de despertar o inesperado. Produzir a massa, cortar os pedaços, cozinhar e ver nascer o prato: macarrão. Tudo feito com ajuda dos netos, ao som da música sertaneja vinda do rádio de pilha pendurado na janela da cozinha.
Passávamos o ano inteiro distantes, ansiosos pela chegada de dezembro e seus encontros. Não havia limites na cidade da vó, na casa da vó, no coração da vó. Quando meu pai estacionava em frente à casa, ela corria abrir o portão e nos recepcionava cantando: as andorinhas voltaram e eu também voltei. Aos poucos, chegavam outros primos e a bagunça se instalava. Aprendemos tanto naquelas correrias no quintal e, já naquele tempo, sempre ficou claro para nós que uma andorinha voando sozinha não fazia verão.
A partida das andorinhas anunciava o novo ano. Restava o quintal vazio e o conforto do reencontro dentro de alguns meses. Até a despedida definitiva, a casa vendida transformada em lembranças. Hoje uso músicas e comidas para despertar as memórias daqueles tempos, preparo um macarrão caseiro ao molho sugo, coloco Trio Parada Dura para tocar e, saciada, escrevo sobre bandos de andorinhas que cruzam o céu.
Cada um desenvolve seus rituais para seguir. Quais são os teus?
Crônica: O retorno das andorinhas
Musicalmente falando, cresci num lar eclético. Se, por um lado, minha mãe transformava Bethânia, Chico, Caetano e Roberto em cantigas de ninar, por outro, meu pai era a mistura de ritmos. E por ele eu conheci sambas, pagodes, rocks e a música sertaneja. Na infância, emendava “As canções que você fez pra mim”, do Roberto, com “Nova York”, de Christian e Ralf, o que eu fazia sem constrangimento algum.
Com o tempo, a gente fica metido a besta. Quem se distancia da realidade social e intelectual dos pais por conta das vivências escolares/acadêmicas e ascende a outra esfera intelectual sente, num primeiro momento, a necessidade de negar os gostos e características do seu lugar de origem. Passamos a achar brega, ultrapassado e deselegante aquilo que nossos pais ouviam, comiam, falavam, assistiam. Tolice nossa!
Algumas leituras que fiz em 2023 tratam dessa questão. Vou citar “Lutas e metamorfoses de uma mulher” (Édouard Louis, Todavia, 2023), “O lugar” (Annie Ernaux, Fósforo, 2021) e “O que é meu” (José Henrique Bortoluci, Fósforo, 2023). As três obras partem de propostas autoficcionais, exploram a formação de famílias e, consequentemente, dos que fazem parte delas.
Em “O que é meu”, Bortoluci narra a história de um homem comum, seu próprio pai, caminhoneiro por 50 anos. As experiências do Didi, como é conhecido o protagonista, falam de uma pessoa que teve a vida pautada no trabalho, na insegurança financeira, no alheamento político, ao mesmo tempo em que participou da execução de projetos considerados essenciais para o “progresso” do país, como usinas, aeroportos e rodovias.
A música sertaneja, segundo o autor, foi o gênero que mais contribuiu para a formação de imagens e narrativas sobre a vida dos profissionais do volante. Para exemplificar, ele usa “Sonho de um caminhoneiro”, gravada em 1981, por Milionário e José Rico:
Esse tipo de música cantou e canta não somente a realidade dos profissionais do volante, mas de tantos outros personagens como o povo do sertão, as mulheres das casas de prostituição, a infância e a vida simples no campo, as dores de amor. Tem música sertaneja no meu DNA, ainda que, em alguns momentos, eu tenha lutado contra isso. Nesse embate para me afastar do que está colado nas raízes, tentei esquecer “Fio de cabelo”, a primeira canção que aprendi do começo ao fim, com dois anos de idade. Hoje reconheço a ineficácia da luta e a paz sentida quando, ao baixar das armas, me reconciliei com o som das origens.
Não escuto música sertaneja todo dia e não falo sobre aderir ao gênero, frequentar shows dos artistas. Falo sobre compreender a relevância do estilo para uma parcela significativa da população brasileira e, mais do que isso, para os que vieram antes de mim e escreveram a história familiar que me constitui.
Ao lado do Carimbó do Norte e das toadas de boi, a música sertaneja se transformou em código íntimo para abrir portas à saudade. Quando ela aperta, são esses os sons ouvidos, sem moderação, pelos cômodos da casa, trazendo de volta as andorinhas saudosas, impedidas de regressar de outra forma que não seja pelo mágico embalo das canções.
Anota aí!
O autor de "O que é meu" criou uma playlist com as referências musicais que permeiam a obra. Você pode ouví-la aqui:
A história do Seu Didi, o pai do José Henrique, foi tema do último episódio de 2023 do podcast Rádio Novelo Apresenta. Me emocionei ao ouvir o programa, que traz trechos das entrevistas feitas pelo autor com seu pai, falecido em novembro do ano passado. Vale a pena ouvir! (É a segunda parte do episódio)
FLIP 2023
Em novembro de 2023, quando estive na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), pude conhecer mais do trabalho do José Henrique Bortoluci, autor de "O que é meu". Ele, que é sociólogo, participou de uma das mesas da programação principal do evento (Venha com um nome de família), ao lado da escritora alemã Nora Krug. A mesa teve a mediação da jornalista Gabriela Mayer.
Ao ser questionado sobre os desafios que envolveram a produção do livro, o autor destacou o trabalho de traduzir a linguagem simples do pai, sem perder a espontaneidade característica dela. Foi interessante saber que as narrativas mitológicas de Penélope e Ulisses serviram de inspiração para a construção da obra, especialmente das figuras do pai e da mãe do escritor. Seu Didi cumprindo as entregas pelas estradas do país, enquanto a mulher cuidava da casa, dos filhos e encarava os desafios financeiros (que não eram poucos).
Foi incrível ouvir Bortoluci e Krug falarem sobre suas experiências a partir da produção de obras autoficcionais. E ainda voltei pra casa com meu exemplar de "O que é meu" autografado!
Lutas e metamorfoses
Minha mãe tinha mais de 50 anos quando se formou em Letras. Ela realizou vários sonhos depois dessa idade e isso me orgulha. Aos 50, se viu divorciada, as filhas crescidas, decidiu fazer o que tinha vontade.
Ao ler “As lutas e metamorfoses de uma mulher”, do Édouard Louis, pensei na minha mãe que, como a Monique, se libertou das obrigações domésticas com o fim do casamento e ganhou o direito de “ser egoísta”. É o próprio filho quem diz à mãe: a partir de agora você conquistou esse direito.
E, nesse aspecto, pensei no quanto eu e minha irmã buscamos incentivar nossa mãe, ainda que pesassem os desafios inerentes a uma família pobre e periférica, sem heranças, sem sobrenome importante. Da mesma forma que Édouard, reforçamos esse direito de “ser egoísta”, de pensar em si, de se realizar.
Isso nos aproximou, enquanto mãe e filhas, fez nascer uma cumplicidade até então inexistente e vimos uma mulher que não conhecíamos.
Um dos pontos mais bonitos em “Lutas e metamorfoses” é acompanhar o quanto a relação entre mãe e filho se fortalece depois que Monique se liberta do casamento infeliz, retoma seus prazeres, encontra um novo amor, muda de cidade, passa a se ver como uma “verdadeira parisiense”, encontra pequenos incentivos nas conversas com Eddy.
Um retrato costurado com sensibilidade, poderoso porque dialoga com diferentes realidades, mostra as muitas mulheres que vivem numa mãe. Sortudo é quem consegue vê-las. ✨
“As lutas e metamorfoses de uma mulher” foi publicado em 2023 pela Todavia Livros, com tradução da Marília Scalzo. Boa leitura!
Obrigada por ter lido até aqui. A Malabarista de Palavras volta em breve!
Eu não conhecia esse livro - O que é meu. Escutei Rádio Novelo e achei tão bonito que agora coloquei o livro na minha lista. Inclusive me fez pensar muito na história dos meus pais e da minha família de forma geral, mas de um jeito mais carinhoso e menos traumático.
Terminei de ouvir a história do seu Didi essa semana. Emocionante demais.