Fui oficialmente inserida no universo do trabalho assim que completei 18 anos. Aprovada em Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), eu precisava ajudar nas despesas de casa. Preparei um currículo básico e me dirigi a um shopping para entregá-lo.
Listei lojas de roupas, perfumes e uma livraria, torcendo para ter a oportunidade de trabalhar entre livros, o que seria o paraíso para uma leitora voraz. Uma semana após a entrega dos currículos, recebi o telefonema da responsável pelo RH da livraria e agendamos a entrevista que resultou na minha contratação.
De cara, me informaram que eu seria treinada para vender e acompanharia os vendedores mais antigos nos três primeiros meses, para aprender com eles. Não havia tanto para aprender, entendi rapidamente. Recebi orientações sobre o sistema usado para lançar as compras dos clientes e, no mais, passei o período de experiência dedicada a organizar as prateleiras da loja.
Foi um período interessante. Eu entrava no trabalho às quatro da tarde e ficava até 22 horas, escondida entre as gôndolas, com panos de limpeza e máscara para me proteger da poeira. Organizar as obras incluía checar a localização delas no sistema, algo que ajudava no processo de venda, afinal, nada era mais chato do que não encontrar o livro de interesse de um cliente.
Essa dinâmica de organização permitiu conhecer muitos autores que leio até hoje, como Manoel de Barros e Julio Cortázar. Os desafios se intensificaram com o início da faculdade, a necessidade de conciliar as rotinas de trabalho e de estudo, as demandas familiares e a chegada oficial ao posto de vendedora, como diz a primeira anotação na minha carteira de trabalho.
Vender é uma arte para a qual eu me julgava inapta, mas não podia revelar a insegurança porque precisava do emprego. Ainda que eu amasse livros, isso não tornava mais fácil a relação com vendas e, enquanto não surgia outra possibilidade, tentava dar conta da função e bater as metas para melhorar o salário (R$ 350 fixo + comissão).
As obras de literatura eram as menos procuradas, infelizmente; restava ampliar o conhecimento em outras áreas, especialmente Direito, Contabilidade, Medicina e autoajuda, responsáveis por alavancar o movimento da loja. Não raro, atendia advogados em busca de códigos e doutrinas para seus escritórios e fechava orçamentos de quatro, cinco mil reais, o que salvava o mês.
Decidi, então, procurar mais uma atividade para aumentar meus rendimentos. Por indicação de uma amiga, fiz cadastro para ser revendedora Natura e me iniciei na economia de porta em porta. As revistinhas chegavam em casa e, por orientação da consultora-chefe, eu andava com elas para todo lado. Essa era a regra básica, estar sempre com as revistas e apresentá-las em qualquer situação. Uma boa vendedora não perde chances. Eu perdia muitas e, vez ou outra, precisava fazer um esforço danado para vencer o incômodo que impedia as revistas de circularem.
Diante dos pedidos pouco expressivos registrados no site da empresa, a consultora me ligava para dar dicas, entre elas realizar encontros para demonstração de produtos, distribuir amostras grátis de perfumes, colônias, óleos de banho. Apesar de não colocar todas as dicas em prática, eu me propunha a entregar as revistas a mais clientes, o que incluía minhas colegas de livraria e funcionárias de outras lojas do shopping center.
Na volta para casa, dentro do ônibus, eu mostrava as revistas para conhecidas, esfregava os punhos alheios nas áreas perfumadas das magazines. Às vezes, os esforços surtiam efeito e eu experimentava o ápice que era ver a cliente escrever o nome na página, sobre o produto desejado. O problema desse tipo de prática comercial é que ela impunha mais um desafio: cobrar.
A maioria das pessoas não pagava pelos produtos no ato da entrega. “Transfiro quando receber o salário”. “Vou ganhar um dinheiro semana que vem e te pago”. Dependendo do valor da compra, ainda havia pedidos para parcelamento. Eu anotava os combinados, para não esquecer, mas confesso que tinha energia zero para cobrar os devedores, nunca fui do tipo que ficava no pé.
Na verdade, o valor da dívida determinava o quanto eu lutaria para receber. Numa das vezes, achei justo cobrar uma conhecida que comprou três perfumes e sumiu, deixando um prejuízo de R$ 180 (o que fazia muita diferença na minha vida de jovem universitária). Como ela morava perto de casa, me dei o trabalho de visitá-la duas vezes, para pegar o que me cabia. Nas duas ocasiões, ouvi desculpas e promessas de que, em breve, o dinheiro estaria nas minhas mãos (literalmente, porque naquele tempo os pagamentos em espécie predominavam).
A má pagadora tinha uma loja de roupas no bairro onde eu morava e resolvi usar isso a meu favor. Fui até o estabelecimento numa manhã de sábado e surpreendi a mulher. “Quero comprar umas roupinhas”. “Preciso renovar o guarda-roupa”. Animada, ela começou a caminhar entre as araras e a selecionar peças que, na sua opinião, poderiam me interessar. “Prefiro shorts e blusas”, expliquei.
Não tive dificuldade de selecionar quatro peças que, somados os preços, se aproximavam do valor da dívida. Após colocar as roupas numa sacola e me entregar, a dona da loja fez as contas. “Ficou R$ 170. Qual a forma de pagamento?”, perguntou e foi pegando a máquina de cartão, supondo que essa seria a resposta. Não dava para perder a oportunidade. “Pode abater no valor dos perfumes, que você não me passou até agora”.
Dito isso, apertei a sacola contra o peito e deixei a loja, sem dar tempo para a mulher contra-argumentar. O coração batia forte; num primeiro momento, tive vontade de correr, tamanha a vergonha. Mas a vergonha passou no caminho de casa, substituída pela satisfação daquele impulso de coragem e justiça.
Alguns meses depois, eu conseguia o primeiro estágio de Jornalismo e, por um bom tempo, vender esteve distante da minha realidade. Até me tornar escritora, publicar livros e ser novamente inserida num universo de comércio (é comércio, goste ou não). Mas isso é assunto para outra hora.
A Malabarista lê: personagens trabalhadores
A literatura também é espaço para tratar das relações de trabalho e levantar reflexões sobre o tema a partir das ocupações dos personagens. Vou citar alguns casos:
Gregor Samsa - protagonista de “A metamorfose”, do escritor Franz Kafka, Gregor acorda de sonhos intranquilos, numa certa manhã, transformado em inseto monstruoso. O homem é caixeiro viajante, um mercador ambulante que demonstra descontentamento com sua ocupação.
“Que profissão cansativa eu escolhi. Entra dia, sai dia – viajando. A excitação comercial é muito maior que a própria sede da firma, além disso me é imposta essa canseira de viajar, a preocupação com a troca de trens, as refeições irregulares e ruins, um convívio humano que muda sempre, jamais perdura, nunca se torna caloroso. O diabo carregue isso”. (Página 8. São Paulo: Companhia das Letras, 1997)
Santiago: o pescador do livro “O velho e o mar”, de Ernest Hemingway. Após 84 dias de angústia, sem conseguir uma boa presa, Santiago pesca um descomunal peixe Marlim, com o qual empreende longa e cansativa luta. A obra também é interpretada como uma metáfora do processo artístico do autor e dos percalços do fazer literário.
Edgar Wilson: protagonista dos livros “Enterre seus mortos” e “De gados e homens”, da escritora Ana Paula Maia. Nas duas obras, os trabalhos desempenhados pelo personagem falam diretamente sobre a personalidade dele, sobre sua construção. Em “De gados e homens”, Edgar é atordoador, responsável por abater bois num matadouro.
Eunice: Uma das personagens do livro “Solitária”, de Eliana Alves Cruz, Eunice dedica boa parte da vida ao trabalho como empregada doméstica num condomínio de luxo. Apoiada pela filha, Mabel, a mulher inicia um caminho para se libertar de uma experiência de trabalho que, embora se passe nos dias de hoje, está repleta de resquícios escravocratas.
Macabéa: Em “A hora da estrela”, Clarice Lispector dá vida à Macabéa, uma alagoana de 19 anos que vai morar no Rio de Janeiro, onde consegue emprego como datilógrafa. Na pensão em que vive, a moça divide quarto com outras mulheres, funcionárias das Lojas Americanas.
Quais personagens trabalhadores te marcaram?
Este mês começa com uma data destinada a celebrar os trabalhadores. O 1° de maio é oportunidade para repensar as relações de emprego e os direitos de quem trabalha. É certo que necessitamos de dinheiro para viver, porque os boletos não param de chegar. Cada vez mais se faz necessário repensar como queremos experimentar a vida, essa jornada que precisa ir além da sobrevivência.
O que resta de você quando as luzes do escritório se apagam?
A Malabarista indica:
A primeira vez que te vi foi na livraria. Anos mais tarde eu te reconheceria e nos conheceríamos.
Como você é uma escritora das melhores acho que os leitores chegarão facilmente.
Mas o verbo cobrar, minha amiga, nesta crônica foi justiceiro.
Esse papel, o de vendedora, é tão difícil mesmo. Sobre amar e vender livros e seus abismos.
Como péssima cobradora, eu me senti vingada com essa crônica. Hahaha.