Mais que um quarto nos fundos
Crônica-lembrança despertada pela visão de uma embalagem de batata Pringles na prateleira do supermercado.
Esta newsletter não nasceu aqui (na Substack). Minhas primeiras aventuras nesse universo foram feitas em 2022, a partir de uma ferramenta chamada Flodesk. Recentemente, voltei às edições divulgadas naquele período e me deparei com textos que senti vontade de trazer para cá. Vou começar com “Mais que um quarto nos fundos”, crônica-lembrança despertada pela visão de uma embalagem de batata Pringles na prateleira do supermercado.
Boa leitura!
Mais que um quarto nos fundos
Avisto o pacote de batata Pringles na prateleira do supermercado e lembro do Paulo, um amigo de adolescência. Morávamos no mesmo bairro e, ao menos uma vez por semana, a turma se reunia para tocar violão, com Legião Urbana e Charlie Brown Jr. sempre presentes.
Numa dessas ocasiões, começamos a cantar a música de abertura do nosso desenho preferido. Faça elevar o cosmo no seu coração, todo o mal combater, despertar o poder. Era bonito de ouvir nossas vozes juvenis reunidas, na tentativa de acompanhar o som do violão. Sua constelação sempre irá te proteger, supera a dor e dá forças pra lutar.
Paulo se mostrou um dos mais animados com a cantoria e todos notaram. A Mariana esperou pelo fim da música para transformar a face num ponto de interrogação: “Como você aprendeu isso? A tua família nem tem TV em casa!”. O Paulo gaguejou, tentou se explicar e, por fim, admitiu que sim, havia televisão na casa dele.
A informação nos deixou surpresos. Sabíamos que, por questões religiosas, a família do Paulo era proibida de ter determinados objetos, especialmente a abominada televisão. “Existe um quarto nos fundos do terreno, nele guardamos TV, videogame, fardos de Coca-Cola e batata Pringles”. Coca-Cola e Pringles também eram itens demoníacos que, em tese, não entravam na residência daquela família.
O Paulo contou sobre o cotidiano deles, a rotina de funcionamento do “quarto proibido”, trancado sempre que uma visita aparecia. Se a porta estivesse aberta, ele e os irmãos podiam entrar, jogar, assistir aos programas que gostavam e ainda comer umas batatas. Não havia nada melhor do que aquele cômodo nos fundos do terreno, o lugar mais divertido ao qual tinham acesso.
“O que falei é segredo nosso. Ouviram? As pessoas da igreja não podem saber”. Eu nem me lembrava mais dessa história, até ver o pacote de Pringles na prateleira do mercado. Então, o rosto do Paulo se iluminou na minha memória, com as feições de uma adolescência que não existe mais. Que rosto tem o Paulo adulto?
Ando entre os corredores do mercado acompanhada por outros pensamentos, além da tentativa de imaginar fisionomias. “Quartos proibidos” não fazem mais sentido numa realidade em que milhares de conteúdos estão disponíveis na palma da mão, pela tela de um celular. Na época em que conheci o Paulo, nossos celulares não tinham acesso à internet e serviam exclusivamente para ligações e jogos muito rudimentares.
Mais do que imaginar a existência ou não desse tipo de cômodo, penso na tristeza que é ter que acumular divertimentos em poucos metros quadrados para que fiquem à distância de olhos julgadores. Perder um episódio de Os Cavaleiros do Zodíaco porque a vizinha chata não vai embora. Zerar o Super Mario World sem poder contar o feito a ninguém. Passar dias sem assistir Castelo Rá-Tim-Bum, outro desenho “demoníaco”.
Imagina como seria perder tudo isso! Recompensa alguma poderia reparar um prejuízo desses. O “quarto proibido” salvou a infância do Paulo. Antes de passar no caixa, volto ao corredor onde me deparei com a embalagem de Pringles e coloco uma delas no carrinho. Quero mastigar essa memória e sentir o seu gosto, enquanto me admiro com tamanha criatividade: colocar o diabo dentro de um pacote de batata chips.
Tempos íntimos:
No dia 6 de julho, lançarei oficialmente o meu segundo livro de contos. “Tempos íntimos” foi selecionado para publicação pelo edital “Estevão de Mendonça”, da Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer (Secel) de Mato Grosso. As narrativas que fazem parte da obra foram escritas entre 2020 e 2022, dentro de propostas de prática e experimentação da palavra.
Embora não tratem diretamente sobre o pandemia, os contos e seus personagens dialogam com a solidão, reclusão, esquecimento, afastamentos e aproximações, temas reforçados pelas vivências pandêmicas. Na edição que chegará ao público em breve, cada narrativa ganhou uma ilustração em aquarela, criada pela artista Dani Dias. “Tempos íntimos” marca meu retorno ao Selo Auroras (editora Penalux), pelo qual publiquei “A casa do posto”, meu primeiro livro.
Sinopse:
Mulheres literalmente marcadas na pele com desenhos enigmáticos. Águas cheias de visões, sejam do passado, sejam do futuro. Um apito diário a percorrer o bairro. Poemas feitos de vapor, como se fuera la última vez. No terreiro, jaz o silêncio. Para o luto, cerveja em dois copos. Há quem desaparece, há quem desiste.
Tempos íntimos, de Larissa Campos, traz um compilado de ilusões, 24 contos ilustrados a instigar a leitura por seus aspectos cotidianos manejados de formas espetaculares. Um caminho apontado pela autora sem nenhuma volta, numa obra selecionada para publicação pelo edital de fomento Estevão de Mendonça, do Governo do Estado de Mato Grosso.
As ilustrações são de Dani Dias.
Como adquirir:
Por enquanto, o livro pode ser comprado pelo site da editora ou diretamente comigo (há um botão para pedido no Instagram ou, se preferir, basta mandar mensagem pelo direct). A conta é: www.instagram.com/laricampos10
Lançamento oficial:
A publicação de “Tempos íntimos” será celebrada num evento aberto ao público, no dia 6 de julho, a partir das 19h, no Espaço Cultural A Casa do Centro, em Cuiabá (MT). Haverá venda de exemplares no local.
No processo de divulgação do novo livro, participei de alguns programas jornalísticos esta semana e vou compartilhar os links para quem quiser assistir e conhecer mais desse projeto.
Entrevistas
*Programa RDTV News, com Poliana Mazzo: assista aqui
*Programa Jornal da Manhã, Rádio JovemPan Cuiabá: assista aqui
Matéria sobre oficinas de escrita
*Jornal A Gazeta: leia aqui
Live
*Com Fábio Lucas, do LivroNews: assista aqui
Artigo
*Desafios de ser escritora em Mato Grosso: leia aqui
Aperitivo
*A pedido do escritor Lorenzo Falcão, do site Tyrannus Melancholicus, enviei um conto de Tempos íntimos para publicação. Leia o conto aqui
Ansiosa por Tempos Íntimos e por todos os textos que virão, vindos do seu olhar apurado para o prosaico da vida e do verbo capaz de tornar o comum especial.