Passei uns dias sem carro, a embreagem parou de funcionar. Movida pela situação, pesquisei o funcionamento desse item, a embreagem. Quando pisamos no pedal, um disco pressiona outro disco e, assim, o desempenho do veículo é garantido. Comecei a notar o problema uma semana antes; para alcançar alguma velocidade, a força empregada era descomunal. E lá estava eu, com dificuldade de chegar a 40 km/hora, atrapalhando o trânsito e deixando irritados os outros condutores.
O carro ficou dois dias na oficina, para resolver esse problema e mais um, identificado pelo mecânico durante o serviço. Ao pegar o veículo, observei outras máquinas estacionadas no pátio do local, as peças espalhadas pelo chão, à espera da montagem. Havia ali um carro com placa de Rio Branco, a capital do Acre, e comecei a me perguntar de quem seria, como havia chegado a Cuiabá, cidade localizada a quase 2 mil quilômetros do município indicado. Quem era o proprietário? Quais atividades desenvolvia?
A placa do meu carro é modelo Mercosul, dessas mais recentes, que só trazem o país de registro do veículo. Adotada no Brasil desde 2018, ela foi defendida como alternativa para evitar falsificações e padronizar as placas nos países que integram o Mercosul.
Na infância, minha irmã e eu nos divertíamos ao reparar as cidades de origem dos carros em circulação e criar narrativas a respeito disso. Em poucos minutos, tínhamos um enredo completo, com personagens, espaço, tempo. Apenas as narradoras nunca mudavam.
Numa ocasião, estávamos no restaurante Tucano, um dos lugares que mais frequentávamos na infância em Cuiabá, quando chegou um carro com placa de Manaus, a cidade onde nasci e onde vive minha família materna. Não nos acanhamos e abordamos os ocupantes do veículo; oriundos da capital amazonense, eles acabavam de chegar a Mato Grosso. A placa motivou a conversa que se transformou em passeio pelo Amazonas, oportunidade de matar uma saudade imensa.
Tudo por causa de uma placa. As ruas ficaram mais chatas depois do modelo Mercosul. Imaginem a alegria sentida quando ainda vejo as plaquinhas cinzas, com indicação da cidade e estado. É uma fagulha para a criação.
Na oficina, a placa de Rio Branco era a “diferentona”. A caminho de casa, contei os modelos antigos, cada vez mais escassos: oito. Sem saber o que encontraria, dei um Google em “placa Mercosul” e descobri a luz no fim do meu túnel, um projeto de lei para que elas voltem a informar cidade e estado de origem. A proposta já foi aprovada no Senado Federal e encaminhada à Câmara dos Deputados. Consulto a tramitação do projeto com frequência e nunca depositei tamanha esperança num projeto de lei.
É claro que não me atento aos pontos legais e práticos da argumentação do proponente. Meus argumentos são outros e eles passam pela infância, pela memória e pelo apreço às narrativas que somos capazes de criar a partir de uma simples placa de veículo.
A Malabarista lê:
Li recentemente “A obrigação de ser genial”, da escritora argentina Betina González, leitura valiosa para escritores e amantes da literatura em geral. O livro é um compilado de ensaios em que a autora aborda temas como a emoção no texto literário, criação de personagens, o ritmo na construção narrativa, o poder da imaginação para quem escreve.
Betina cita Bachelard e sua “poética do devaneio”, essa matéria-prima para o exercício artístico. Somos constantemente assaltados por ideias, palavras, diálogos, elementos (como as placas de carros do texto anterior) que podem nos ajudar a tecer histórias. Por isso, é tão importante proteger o devaneio, tomar nota, guardá-lo, dar a ele o tempo necessário para que se transforme.
“Imaginar é um ato tão íntimo quanto incomunicável, porque o brincar e a fantasia são as vivências mais sérias do nosso eu, sua verdadeira textura. (...) Escrever ficção é uma afirmação dessa autonomia, uma reivindicação do direito à imaginação em uma sociedade que continua a sustentar que só a realidade é digna de ser narrada”.
(Betina González)
O trabalho da imaginação é componente intransferível da escrita literária, aquilo que não pode ser ensinado, que não se aprende em uma oficina. Ler ficção é um caminho para abastecer o imaginário, algo que Betina também considera político.