Crônicas musicais #02
Uma série sobre canções e seus personagens. Desta vez, a inspiração é E.C.T., de Carlinhos Brown, Marisa Monte e Nando Reis
Publicar livros e vendê-los me levou a conhecer o envio módico. É uma modalidade especial praticada pelos Correios, com tarifa mais acessível para despacho de livros e outros impressos. Até ter livros publicados e precisar remetê-los a pessoas de vários lugares do país, eu não sabia do que se tratava.
Desde 2022, vou até agências dos Correios, entrego os pacotes aos atendentes e reforço: “Envio módico, ok?!” Reforço verbalmente o que já está indicado no envelope: “Impresso, registro módico. Pode ser aberto pela E.C.T”. É necessário registrar no envelope e sim, funcionários da Empresa de Correios e Telégrafos estão autorizados a abrir a embalagem para conferir o que está ali dentro.
Antes eu escrevia a frase à mão no envelope, hoje tenho o aviso impresso e colo nas embalagens. Me causa certo desconforto o recado, pelo qual manifesto anuência à abertura da correspondência, algo que considero tão íntimo, mesmo quando se trata de um livro. Cada exemplar vai acompanhado de dedicatória pensada especialmente para quem comprou e, nesse caso, não me agrada ser lida por terceiros.
Imagina alguém abrir, sistematicamente, correspondências destinadas a outras pessoas, tendo acesso a elementos particulares, segredos, itens inusitados! É disso que fala a canção E.C.T., composta por Carlinhos Brown, Marisa Monte e Nando Reis. O nome da música faz referência à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, onde trabalhava o carteiro conhecido como Fulô Boca Rica, que teria inspirado os compositores.
Na letra, “o cara que carimba postais” abre uma carta, “por descuido”, e fica boquiaberto com o conteúdo: era uma carta de amor. Não satisfeito em ler, ele transforma a mensagem em música, para desespero de quem escreveu:
Tava em casa, a vitamina pronta
Ouvi no rádio a minha carta de amor.
E o que dizia a carta:
Eu caso contente, papel passado e presente
desembrulhado
vestido, eu volto logo me espera
não brigue nunca comigo, eu quero ver nossos filhos
o professor me ensinou fazer uma carta de amor.
E.C.T. é a reclamação de alguém que teve seus escritos violados, musicados, expostos no rádio para quem quisesse ouvir. Não é, no entanto, essa vítima que me detém e motiva esta crônica. Quem me move é o carteiro violador, o homem que abria as correspondências e se surpreendia com elas. Me perco nas possibilidades contidas nesses pacotes, nos elementos ali encerrados e presentes nas histórias de gente que nem sempre sabe o valor das suas histórias, gente que confia, antes de tudo, que os envios chegarão aos destinos.
O que cabe num envelope? É difícil mensurar.
Um envelope pode conter até mesmo as coordenadas para tratamentos espirituais à distância. Quando eu era criança, ouvia os relatos dos familiares submetidos às cirurgias do médium Bezerra de Menezes. Funcionava assim: a pessoa interessada enviava carta para determinado endereço descrevendo o problema de saúde. Esperava-se a resposta e nela havia, entre outras orientações, a data e horário em que a equipe espiritual se dedicaria à questão. A carta dizia ainda o que comer no dia, como se vestir, o que fazer na hora combinada, a hora da cura. Os pacientes seguiam à risca as coordenadas e, na família, se multiplicaram os relatos de tratamentos bem-sucedidos.
Não é o caso de discutir aqui a eficácia ou não desses procedimentos. Porém, tenho saudade dos almoços de domingo em que os parentes, predominantemente católicos, se sentavam para compartilhar casos de cirurgias espirituais de cura, todos com olhos vidrados de interesse, sem faces reprovadoras, sem avisos de “parem agora ou seguirão todos, de comboio, para o inferno”. Hoje, para se submeter a esse tipo de tratamento, basta mandar um e-mail.
A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (E.C.T.) foi criada em 1969, como empresa pública, substituindo o Departamento de Correios. Ao longo de sua existência, a estatal tem garantido o fluxo de encomendas dentro e fora do Brasil, de forma que seja possível, ainda hoje, encontrar agências nos confins desse país continental, bem como pagar tarifas mais em conta, como no caso do registro módico.
As frentes políticas neoliberais não poupam críticas aos serviços prestados pela estatal e bradam a favor de sua privatização. Colocar a E.C.T. nas mãos da iniciativa privada é a meta de muitos personagens da política brasileira atual. Dadas as movimentações temerosas desses personagens, não sabemos por quanto tempo os Correios estarão entre nós, na configuração conhecida. O modelo de franquias já funciona na instituição, outras mudanças têm sido implementadas e o cenário político brasileiro não inspira otimismo. Mas sinto algum conforto com a empresa eternizada nos versos de Carlinhos, Marisa e Nando, inspirados pelo funcionário-carteiro, a levar um mundo de histórias na bolsa.
Vale a pena assistir:
Episódio do programa “Por trás da canção” conta como nasceu “E.C.T.”, na ocasião em que Marisa e Nando, namorados à época, foram visitar o amigo Carlinhos, em Salvador.
E por falar em carteiros, conheça a história de Severino José da Silva, o homem que entrega correspondências há mais de 50 anos pelas ruas do Recife.
Escute, sempre que puder, minha versão preferida de E.C.T., na voz de Cássia Eller: