Os blocos estão na rua. Este ano, o meu não vai sair. E o teu? O feriado será aproveitado para descanso, leituras, corridas no parque, momentos mágicos de contemplação.
A folia é bonita e, mesmo sem misturar o corpo na multidão desta vez, eu me colocaria numa janela para assistir a procissão de quem festeja.
Carnaval é poesia
templo de oração
de corpos livres,
dias eternos de cor
e brilho.
Como andar sem poesia?
“Não consigo ler poemas”, confessou uma amiga recentemente. “Não é exclusividade tua, ouço isso com frequência”, eu respondi. Ao longo da conversa, percebi que a resistência dela ao gênero estava relacionada à ideia de uma poesia mais tradicional, arcaica, algo acessado nos tempos de escola e esquecido por lá.
Além disso, há quem tenha dificuldade de encontrar sentido quando lê poemas, porque as palavras fogem de seus significados literais, provocam os sentidos, geralmente não conduzem a uma história, a uma ideia com início-meio-fim.
Estabeleço metas para leitura de poesia, exatamente porque não gosto de me afastar dela. Quando somos crianças e começamos a estudar as classes de palavras, aprendemos sobre tipos diversos de substantivos. Entre eles, estão os concretos e os abstratos.
Os primeiros fazem referência ao palpável, aquilo que podemos ver ou tocar, como objetos, lugares ou indivíduos. Os segundos expressam ação, qualidade, sentimento, sensação ou estado.
Os conceitos da linguagem denotativa e conotativa também participam de nossas vidas desde a infância. Na denotação, as palavras são apresentadas no sentido dicionarizado, enquanto a conotação segue pela abordagem figurada dos vocábulos. Se, por um lado, a denotação é objetiva, a conotação se vale da subjetividade.
Na prática jornalística, que desempenho profissionalmente, a experiência de escrita é pautada na concretude dos termos e na denotação dos sentidos. A poesia repousa nas abstrações, na pluralidade de significados, nas possibilidades de brincar o carnaval das palavras.
Por essas razões, não me afasto dela – da poesia – porque ela apresenta novas perspectivas para o uso da linguagem e provoca o desejo de subverter, de ser foliã nesse festejo, que enriquece minha experiência de escrita, independente da forma assumida, o verso ou a prosa.
Poesia é recomendação forte mesmo para quem não escreve mas deseja apurar a sensibilidade, se tornar mais atento às palavras e suas engrenagens, miudezas que quase ninguém vê. A poesia nos faz refém da palavra e nos liberta.
Experimentar
Esta edição da “Malabarista de palavras” é convite para experimentar poesia e conhecer autoras contemporâneas dedicadas ao gênero. Fiz uma curadoria de obras que li recentemente e das quais gostei bastante.
1 - amargo, de Alê Magalhães
Alê Magalhães é poeta, professora da rede pública, doutora em Literatura. A obra “amargo” é a segunda publicação dela pelo Selo Auroras, da editora Penalux, e me acompanhou nos primeiros dias de 2024. Os poemas da autora formam um retrato do que o Brasil experimentou politicamente entre os anos de 2018 e 2022 e dos impactos na vida da população. Reproduzo abaixo o poema quebrá-la-ei, um dos meus preferidos dessa obra:
eu vou quebrar a mão invisível do mercado eu vou arrancar do corpo a mão eu vou cortar a mão em muitos pedacinhos eu vou queimar a mão a mil graus eu vou recolher as cinzas que sobrarem eu vou soprar na cara de quem disser que o mercado está nervoso.
Você pode acompanhar o trabalho de Alê Magalhães pelo perfil Literaleblog, no Instagram, ou pela newsletter
2 - Câmera lenta, de Marília Garcia
“Câmera lenta” foi um dos livros que eu trouxe da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), onde estive em novembro do ano passado. Ainda não conhecia a escrita da Marília Garcia e escolhi começar por esse. Achei sugestivo o nome da obra, porque a considero cinematográfica. É como se a autora usasse os poemas para reproduzir cenas e cenários vistos em câmera lenta, tudo aparentemente desalinhado e desconectado, à espera da costura do leitor. Leitura é costura.
A poesia de Marília, nesse livro, é filosófica e metalinguística, trazendo também reflexões sobre o ato de escrever, como se observa neste trecho de hola, spleen:
assim, esta voz que fala aqui é a voz de uma Marília de um mês atrás é a minha voz falando a partir do passado, é a minha voz mas sem controle. há um mês eu não tinha como prever nada e fiquei me perguntando: – como fazer para essas palavras escritas há um mês dizerem algo sobre estar aqui agora?
3 - Tuia, de Priscila Kerche
Reencontrei Priscila Kerche nas ruas de Paraty, num fim de tarde. Trocamos livros e impressões sobre a Flip, falamos de nossas investidas na literatura. Priscila, assim como eu, estudou Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), onde nos conhecemos. É uma alegria vê-la a serviço da palavra e da poesia, imprimindo seu olhar no mundo.
Tuia é o livro mais recente da escritora, lançado em 2023 pela Laranja Original. A obra é dedicada “para a jovem Priscila” e, não por acaso, é um mergulho nas memórias da infância/adolescência vivida no centro do país.
O nome da obra foi tirado do poema Descoberta:
nove de abril de 1998 podaram as TUIAS você escreveu a palavra em maiúsculas circulou o nome dos pinheiros de nosso quintal pinheiro-de-cemitério árvore-da-vida paisagem do sul no centro-oeste possui escamas nas folhas medicinal em casos que não o sei pronome possessivo em outra língua sua tuya
4 - um corpo negro, de Lubi Prates
Lubi Prates é poeta, tradutora, editora e curadora de eventos literários e culturais. Iniciou sua trajetória na poesia em 2012, com a publicação de coração na boca. Em 2018, lançou um corpo negro, que foi contemplado com bolsa de criação e publicação em edital do Proac-SP, sendo finalista do 61º Prêmio Jabuti.
Nas palavras da própria autora, um corpo negro reflete o processo de tornar-se negro, o que, para ela, “acontece no aqui, no agora, moldado pela sociedade mesmo quando resisto e vou contra ela”. Lubi afirma que, durante a infância, ela pensava que a pobreza marcava a diferença entre ela e as outras crianças, mas, com o tempo, entendeu se tratar de uma questão de raça.
No poema “tudo aqui é um exílio”, a poeta dialoga com “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias:
apesar do sol das palmeiras dos sabiás, tudo aqui é um exílio. tudo aqui é um exílio, apesar dos rostos, quase todos negros dos corpos quase todos negros semelhantes ao meu. tudo aqui é um exílio, embora eu confunda a partida e a chegada. embora chegar apague as ondas que o navio forçou no mar embora chegar não impeça que meus olhos sejam África, tudo aqui é um exílio.
5 - olhos em vírgula, de Janaína Steiger
O trabalho de Janaína Steiger como psicóloga no Sistema Único de Assistência Social (SUAS) serviu de alimento para os versos de olhos em vírgula, escrito e publicado durante a pandemia de Covid-19. A autora, nascida em Porto Alegre, usou a poesia para falar dos desafios dos profissionais que atuaram na “linha de frente”, das angústias e dores da população atendida.
O cotidiano do posto de saúde se transforma num universo infinito e a palavra registra esses tempos duros, impossíveis de esquecer. É a história sendo vivida, narrada e eternizada a partir do olhar e das mãos de uma personagem atenta e sensível.
Nesse caso, a escrita é afago e soco, como diz o poema “Jardim”:
queria te fazer sorrir sem máscara ao imaginar os sorrisos em vírgula que os olhos formam pelo empurrar da bochecha e o som do eco que a risada faz no escudo facial queria te confidenciar sobre o prazer do som abafado pela máscara do estalar dos beijos que ressoam e tocam a bochecha ou os lábios mas não cabe não aqui não agora não apenas e agora te escrevo sobre isso as novas maneiras de tocar queria tocar nisso as maneiras com que a escrita toca afaga abraça dá um tapa na cara
Dicas dadas, experimenta sem moderação! O carnaval logo acaba, mas a folia das palavras é perene. Te joga! Eu volto em breve.