A escrita do conflito: Palestina
Reflexões a partir da leitura de "Tornar-se Palestina", de Lina Meruane
A intensificação dos conflitos na Faixa de Gaza após 7 de outubro do ano passado despertou em muita gente a vontade de se aprofundar nas origens e engrenagens da persistente guerra entre palestinos e israelenses. Diante desse movimento, livros sobre a temática voltaram a ser indicados, lidos e discutidos.
“Tornar-se Palestina”, da escritora chilena Lina Meruane, entrou no meu radar por integrar a recomendadíssima coleção “Nosotras”, da Relicário Edições, com curadoria e coordenação editorial de Mariana Sanchez e Maíra Nassif.
Lina Meruane é professora de literatura e vive em Nova York. De família palestina, ela se submeteu a viagens e realizou pesquisas que permitiram conhecer profundamente a causa Palestina e resgatar a história de sua família. Como resultado, escreveu esse livro, composto por dois ensaios.
No primeiro (Tornar-se Palestina), a autora narra sua primeira viagem a Gaza, em 2002, e as impressões provocadas pela experiência. O segundo ensaio (Tornar-nos outros) traz análises a respeito do conflito em si, especialmente no que se refere ao uso da linguagem nesse processo.
Meruane destaca as formulações verbais que precedem e autorizam a violência, assim como a simplificação dos discursos – o que, segundo ela, culmina em fanatismo e fundamentalismo. Nesse ponto, trata dos diferentes usos do holocausto por parte dos israelenses e afirma que muitos deles “continuam usando o mal infligido a seus antepassados europeus para justificar esse empreendedorismo nacionalista de cunho colonial” em relação aos árabes.
(…) a dívida moral do holocausto (…) está permitindo aos israelenses repetir o passado judeu no presente dos palestinos. (p. 121)
Os muros palestinos são as páginas onde é reescrito o roteiro do holocausto que os judeus continuam legitimamente imputando ao mundo como vítimas. (p. 124)
A antropóloga Julie Peteet, citada por Meruane, reforça a necessidade de reconhecer a estratégia colonialista de Israel, que se aproveitou da narrativa romanceada de que a região convertida em Estado estava desabitada e tinha terras inférteis. Questionar o uso da linguagem e as narrativas construídas no decorrer dos conflitos deve ser, segundo a autora, a responsabilidade de quem se atreve a escrever sobre essas questões.
“Refutar a malversação da linguagem”, “tomar distância da vulgaridade dos discursos prontos”, “quebrar a sufocante dicotomia dos discursos políticos e suas posições binárias” são compromissos de quem escreve o conflito. As versões únicas são fundamentais nos tempos de guerra porque fortalecem as posturas dos inimigos e seus anseios de destruição, por isso, tais versões devem ser confrontadas.
Muito se diz da virtude literária de fomentar a empatia, essa habilidade de se colocar no lugar do outro. Para Lina Meruane, tal virtude não basta quando o assunto são decisões políticas. É preciso mais: esmiuçar discursos, desconstruir narrativas, devolver às palavras os seus sentidos reais.
Críticas a Israel X Antissemitismo
“Não publica, você vai se prejudicar!” Foi esse o tipo de advertência ouvida por Lina Meruane a respeito do livro “Tornar-se Palestina”. A escritora sabia do risco de ser acusada de antissemita ao tratar dos temas aos quais se propunha. Segundo ela, essa acusação é recebida imediatamente por todos os que se opõem aos abusos cometidos pelo governo israelense e faz parte de uma lógica de manipulação.
Apesar das tentativas de calar os opositores, eles seguem ganhando espaço (inclusive entre judeus), como advertiu o historiador Eric Hobsbawm, em 2009:
Permitam-me dizê-lo sem rodeios: a crítica a Israel não implica em antissemitismo, mas as ações do governo de Israel causam vergonha aos judeus e, sobretudo, dão margem para o atual antissemitismo. Desde 1945 os judeus, dentro e fora de Israel, se beneficiaram enormemente da consciência pesada no mundo ocidental, que havia negado a imigração judaica na década de 1930, anos antes de que se permitisse ou que não se opusesse ao genocídio. (p. 140)
Tentar forjar acusações de antissemitismo a quem se levanta contra os abusos de Israel é simplificar um conflito repleto de complexidades. Também cabe à literatura questionar essas e outras simplificações.
Milton Hatoum indica Meruane
O escritor amazonense Milton Hatoum, ao participar recentemente do programa Trilha de Letras, da TV Brasil, indicou a obra de Lina Meruane por considerá-la fundamental para a compreensão do conflito entre Palestinos e Israelenses. Milton indicou ainda os livros “A questão da Palestina”, de Edward Said, e “A limpeza étnica da Palestina”, do historiador judeu Ilan Pappé.
Recentemente, o presidente Lula foi acusado de ser antissemita por comparar as ações de Israel na Faixa de Gaza ao holocausto. Acompanhar a repercussão da fala do presidente me fez lembrar diversos trechos de “Tornar-se Palestina”. O apelo a discursos prontos e simplistas reforça a necessidade de aprofundamento, de estudo a respeito do conflito.
É o convite desta edição: estudar o conflito.
Boa leitura e até a próxima!